Dorian Gray: muito mais do que apenas um rostinho bonito…

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Imagem: Art Gallery ErgsArt em CC BY 2.0

Um privilégio dos escritores de ficção é a possibilidade de fazer pequenas experiências com a realidade, para deixar à mostra aspectos que de outra forma seriam difíceis de perceber. Assim, podem alterar uma pequena regra nos mecanismos do universo, e a partir daí destacar pontos pouco explorados da natureza humana. Se o escritor é ruim, a experiência é um fiasco (como também acontece na ciência, aliás). Mas se escreve bem, o que sai dali pode ser uma verdadeira obra prima.

É o que acontece com Oscar Wilde e sua obra mais conhecida, O Retrato de Dorian Gray. Wilde consegue, a partir de uma única premissa extraordinária e mágica (o retrato), construir uma verdadeira parábola — formada curiosamente apenas por anti-heróis — sobre a moralidade dos atos humanos.

Em Londres, no final do século XIX, um pintor chamado Basil Hallward conhece Dorian Gray, um jovem belíssimo, com um rosto de uma inocência angelical, e convence-o a ter o seu retrato pintado. Um dia, no ateliê de Basil, o jovem Dorian encontra um dos amigos deste, Lord Henry Wotton, um aristocrata bem-falante e tremendamente cínico, que dedica sua vida a exaltar o hedonismo, a procura da beleza pela beleza e a inexistência de qualquer lei moral. Dorian começa a conversar com Lord Henry, e sob esta péssima influência (Lord Henry é em boa parte o verdadeiro demônio da história) convence-se de que a única coisa importante é a beleza, em todas as suas formas. Chega então o momento de ver o retrato pronto, e quando Basil o apresenta, Dorian fica primeiro sem palavras com a maravilha da imagem, mas a seguir entristece-se, pensando que aquela beleza é passageira e não durará mais que uns poucos anos. Faz então um desejo, que é a chave da história: oxalá fosse o retrato que envelhecesse, enquanto ele permanecesse sempre jovem e belo.

Dorian começa a sair com Lord Henry, e sob sua influência parte o coração de uma jovem. Ao voltar para casa naquela noite, olha para o retrato e percebe, para sua surpresa, que este começou a mudar: seu desejo realizara-se! A partir daí, sua vida torna-se um redemoinho de baixezas e de busca insaciável pelo prazer. Livre das consequências de seus atos, Dorian entrega-se aos vícios mais torpes, mas continua com seu rosto angelical, enquanto o retrato assume um aspecto cada vez mais odioso.

No entanto, Dorian passa a ser vítima do mal que mais cedo ou mais tarde ataca todos os hedonistas inveterados: o tédio e a sensação de vazio interior, de insatisfação; começa então a buscar formas de preenchê-la, através da arte, da cultura, e até mesmo da religião, mas sua mente egoísta e frívola não lhe permite ir além da superfície, e seu interior continua vazio como sempre, até chegar ao dramático final (que não vou contar aqui para não estragar…).

Curiosamente, chega um ponto em que Dorian tenta inclusive arrepender-se. Mas é um arrependimento também à sua maneira, isto é, superficial e autocentrado, mais com o sentido de dar-lhe a “satisfação de arrepender-se” do que uma verdadeira contrição; este seria inclusive um bom tema para debater e meditar: o arrependimento pode ser “forçado” a acontecer de modo voluntário, ou nos é de alguma forma concedido “de fora”?

Enfim, a história é uma verdadeira parábola sobre os perigos do egoísmo, do hedonismo desenfreado e da superficialidade, e mais atual do que nunca em nossos tempos, em que o grande hit é a busca do prazer sem responsabilidade: sexo sem compromisso, comer sem culpa, navegar anonimamente, etc. Vale uma meditação pessoal sobre as “travas morais”: será que são mesmo travas, ou serão na verdade uma espécie de “guard-rail” da humanidade, que a impede de cair no precipício sem fundo de um egoísmo brutal?

O Retrato de Dorian Gray é um desses livros fáceis de ler e relativamente curtos, mas que nos deixam com muito o que pensar. Um livro essencial para a estante da sua biblioteca básica!


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